O quê se aprende viajando?


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E aí, galera?

Sigo no meu doutorado sobre a Tailândia e portanto não ando a viajar muito, mas resolvi postar aqui algo que escrevi em 2015 após uma viagem de dois anos. Não foi a primeira, mas foi a mais longa e, provavelmente, uma das mais significativas. Espero que gostem do texto. Afinal, se viajar é a maior escola da vida, o que tanto aprendemos? Aguardo discussões :D

O quê se aprende viajando?

Dizem que viajar é a maior escola da vida e durante toda essa viagem resolvi ponderar, indagar, o que deveras se aprende na estrada. Certamente nada de concreto ou aproveitável pelos parâmetros financeiros, já que viajar produz uma incomensurável sensação de liberdade incompatível com qualquer disciplina empresarial. Até onde sei, viajar ensina como viajar ainda mais, a potencializar o processo da viagem, mas parti questionando o que além é possível aprender. Pode-se dizer que tenho um conhecimento relativamente elevado sobre história e geografia, mas o que, ipso facto, se aprende viajando além de poéticas abstrações, o que é de fato importante, o que se conquista? Talvez viajar com a ideia de uma finalidade seja a antítese da viagem em si...

Essa não foi minha primeira grande viagem. E por isso mesmo tentei viajar do modo mais livre possível, sem guias, sem planejamentos. Parti com dois pressupostos em mente: a Índia antes das monções e a Rússia durante o verão. O que viesse antes e depois seria lucro; seria improvisado e por isso mesmo especial. Sobretudo, o especial muitas vez advém do inesperado. O intuito era queimar, queimar, queimar, sem essa de saber endereços de onde dormir por GPS, sem essa de saber para onde ir uma semana antes. A ideia era descobrir, me jogar, de braços abertos, o máximo possível. Porque é assim, acredito, o melhor modo de viajar. Claro, pessoas são diferentes, não quero de modo algum afirmar que há um modo superior ao outro em como viajar. Mas esse é meu estilo, sem ordem, sem disciplina, sem planejamento. Somente os braços abertos para o imprevisto. Porque acredito nessa ideia, de que me acho quando mais estou perdido. São nesses momentos em que consigo ser convidado para dormir na casa do nativo, para jantar com os locais e ir um pouquinho além do olhar do turista. Todos os guias existentes de Lonely Planet etc, todos os sites de hostelworld e booking.com, todos os GPS por celular, todos os Couchsurfing.com são ótimos; mas eles agem na contramão da caixa de Pandora, afastando todos os medos do mundo, deixando escondida na urna a espontaneidade. E essa, a meu ver, é a profunda joia rara de uma viagem. Viajar é um eterno processo de retornar a vislumbrar o mundo com olhos de criança. Usei o Lonely Planet somente na Índia porque superestimei a dificuldade da viagem naquele país devido ao que escutei anteriormente. Foi um engano que não farei mais. Nenhum guia supera a conversa, o diálogo e a mente aberta.

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Fui o passageiro mais claro onde os homens são da cor do ébano, o mais escuro entre os loiros de olhos azuis e o único de olhos arredondados onde estes são puxados. Já falei outrora, o olhar jamais é hostil, sempre apenas curioso, indagando, "de onde você é, viajante?". Esse é o maior ato que se pode fazer: muito mais do que pular de bungee jump ou caminhar até o Monte Everest, simplesmente ser receptivo, estender a mão, confiar. Porque a viagem é uma incansável dança perpetuamente trocando de ritmos. E quem não confiar, quem não arriscar, quem sentir medo porque leu no jornal que o país tal é perigoso, que a situação tal é suspeita, talvez perca a última valsa. É assim que se entra no vagão do trem sem nada para comer ou beber e termina-se o percurso entupido. Porque as pessoas querem saber quem você é, viajante, e o que faz no país delas! Um sorriso desarma qualquer suspeita de estranhamento. E assim a viagem segue rumo à linha do horizonte e quanto mais lentamente, melhor. Mais detalhes, mais vida aflora no que poderia ser uma paisagem qualquer. Basta deixar a visita do palácio X, da ruína Y ou do museu Z para o dia seguinte e aceitar o convite para conhecer caminhos menos percorridos. São nessas visitas onde adquiro a certeza de que o dito "país favorito" é sempre onde se está no momento.

Quando alguém pergunta qual a razão de viajar, o quê busco na estrada, simplesmente respondo que quero ver com quais cores tal pessoa, ou melhor, tal povo, pinta sua pequena pedra do mosaico da humanidade. Tais cores por vezes são impalpáveis, não há uma explicação concreta. É quando vislumbro por acidente na praça escondida um ensaio de danças tradicionais na Bulgária. E penso: "sim, são essas as cores do mosaico, é por isso que eu viajo. Para ver essa pedrinha do mosaico da humanidade". Não é sempre, constante. A indústria do turismo existe e a busca pelo "autêntico" é complicada em padrões elitistas. Outros olhos são necessários, porque por vezes o autêntico jaz simbioticamente no quase imperceptível e em camadas mais densas dos clichês onipresentes "para turista ver". Mas nesses escassos momentos de profunda beleza, do mundo mostrando sua particularidade, sua beleza única, sinto meus olhos úmidos. É quando vejo o pão tradicional no forno, quando escuto a música ressoando o coração de um povo, quando sinto os aromas espontâneos. E é simplesmente tão bonito, tão sublime. As paisagens mudam, do deserto aos gélidos picos, das florestas às metrópoles. E lá está o motorista da van dirigindo com uma cruz cristã, a meia-lua do Islã com um verso do Alcorão, uma estátua do Buda, uma imagem de Shiva: a mudança pode ser tão singela, tão insignificante aos olhos, simultaneamente que tão poética e profunda aos sentidos. Pode ser verdade que a crença na bondade humana não passa de tolice. A História mostra a disposição dos homens para a guerra, mas ela também demonstra necessidade de intercâmbio e cooperação. Eu prefiro acreditar que a última alternativa seja a tendência dominante.

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E eu gosto de gente que queima, queima, queima todo o fogo da vida, com toda a diversidade colorida que existe no planeta. Esse violento choque de mundo é o que mais me fascina, essa garra toda, essa paixão imensa pelo diferente. Comi sopa de sapo na Malásia e de cérebro de vaca na Turquia, comi pombo no Egito e hambúrguer de dromedário em Dubai, comi coelho na Bulgária e cabeça de bode na Mongólia, comi avestruz na África do Sul e crocodilo no Camboja. Porque há sabor em todos os paladares, há beleza em todas as etnias, há musicalidade em todos os idiomas. O mundo é uma imensa poesia; a maior construção que o homem jamais fez é o seu reflexo inconsciente, a de si mesmo através da História. Seja na montanha de neve ou na selva tropical, no povoado na praia ou na gigantesca metrópole dos arranha-céus, a dança, a feição da humanidade, grita, grita, grita com todo o louvor na sua tentativa de eternidade. E o que se vê é apenas um breve lapso, dos rostos mudando a cada fronteira percorrida, de uma fuga que culmina na perpétua busca. Talvez os deuses não tenham concedido a imortalidade aos homens para que jamais seja possível contemplar o mundo inteiro. E se assim for, tanto melhor, para que a viagem jamais perca seu fator de surpresa; que toda grande viagem sempre seja incrédula!

Igualmente, aprende-se muito sobre si. Talvez a maior despedida não seja do mundo, mas de mim mesmo. E também sei que quando se ama o mundo inteiro, não se está completamente satisfeito em lugar algum. Ainda que pudesse fazer como os pássaros e voar (na velocidade de um jato supersônico) para passar meus dias em Paris e minhas noites em Bangkok, não seria o suficiente. Porque é a mutação, a transição dos povos, o que mais me fascina. Por mais deslumbrante que um lugar seja, segue sendo apenas um lugar dentro o infinito leque de possibilidades oferecido pelo mundo. É a constante possibilidade, a constante renovação, a refiguração o que me conquista. Viajar é se satisfazer por não estar satisfeito, por mais que em muitos momentos chega-se próximo em desejar que o temo páre, resta uma lacuna, uma faísca: o chamado da estrada, de seguir adiante. E não haverá nada de errado nisto no dia em que puder sustentar a transitoriedade ad aeternum, mas enquanto esse dia não chegar...

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Ainda assim, viajar é o mais próximo dessa satisfação, de que o desejo maior não é almejar pelo futuro promissor alcançado pelo sacrifício do presente, mas a própria eternidade do momento presente, de que o momento atual não acabe: a tal sensação de estar vivo. De que os dias são longos como as segundas-feiras e intensos como os sábados, como a vida deveria ser. A viagem para o viajante é semelhante ao pacto de Fausto com Mefistófeles. Os raios do horizonte, o calor da deusa Liberdade lhe chamando com a promessa jamais cumprida da satisfação geram tão somente o crescente desejo de ir além. Esse além - enfatizo - nada tem a ver com fronteiras geográficas, com quilómetros percorridos. É uma distância metafórica, do quanto você é capaz de se jogar. As fronteiras são apenas um incentivo para seguir adiante, para despertar a curiosidade aos que não temem o escuro. Percorrê-las é entender simultaneamente o Si e o Outro. Não obstante, o que se aprende afinal...

Viajar ensina tolerância e compreensão, como afirmou Mark Twain quase duzentos anos atrás. Porque ao ver o mundo aprende-se também a escutar as vozes de seus povos. Viajar melhora a perspectiva de si diante do mundo, a efemeridade da vida e a grandeza do planeta e sua história, suas diferenças e semelhanças. Viajar é apenas uma etapa para a utópica paz, ainda que ilusória: já que as revoltas existem contra um poder dominante e é fácil pregar paz mundial na posição do dominador, dizendo que o mundo seria belo se todos aceitassem suas regras. Não sou ingênuo, assim como não ignoro que o poder de um vem da exploração do outro e que justificativas são necessárias para legitimar a perpetuação de o dito poder. É lindo viajar, mas a viagem somente é possível mediante recursos financeiros oriundos da exploração alheia. Eu sei e não precisam me lembrar de que viajar é a apoteose do individualismo burguês e posso apenas retrucar alegando que outras atividades igualmente são. Eu sei que a cada ônibus e a cada restaurante há um trabalhador mal renumerado etc e ainda assim preciso negociar e pechinchar com eles já que disso depende a continuação da estrada. Ainda assim, tal paz e harmonia estariam mais próximas se as pessoas viajassem mais. Se não pela identificação via a semelhança, ao menos pela contemplação da beleza do diferente. Viajar excita e expande o gosto estético, assim como todos os sentidos, e de que o mundo seria sem graça se todos os países compartilhassem a mesma arquitetura. Se em todos os lugares existissem apenas igrejas ao invés de mesquitas e mosteiros budistas. Se a música cantasse sempre a mesma melodia e se a comida tivesse o mesmo sabor. Acredito que os maiores déspotas totalitários não viajaram, porque se tivessem experimentados as cores, os sabores, as melodias e os aromas do mundo... se tivessem escutado a voz da humanidade, talvez sentissem mais remorso na elaboração de suas razões. Desligue a televisão com seus preconceitos contra muçulmanos totalitários e europeus racistas e pegue a estrada. Talvez tudo o que viajar ensine seja a ter um pouquinho mais de bondade. Eu acredito nisso.

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De longe uma das melhores ações que jamais fiz na vida. Um belo espetáculo e foi a maior das minhas viagens. Fiz algumas no passado e espero realizar diversas outras no futuro, mas talvez para sempre essa seja a mais longa de todas. Minha pequena volta ao mundo. E agora brindo...


DOIS ANOS DE VIAGEM!

Eduardo Cidade

(texto escrito em 2015. Atualmente, doutorando pela Universidade de Lisboa em Antropologia com tema de tese sobre a Tailândia)

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