Um almoço de 3 horas na Itália
Enquanto a maioria dos habitantes do velho continente assume posturas e modos mais contidos, os italianos se expressam abusando de gestos, berros, tapas, beijos, hipérboles e superlativos. É preciso um dicionário que explique o significado de todas as gesticulações - com um capítulo à parte para as múltiplas interpretações das mãos em forma de coxinha- para facilitar qualquer tipo de comunicação. Na Itália não existem coisas bonitas, interessantes ou especiais. É tudo divino, stupendo, fantastico, bellissimo. Para cada lugar ou comida que se aponte, vai aparecer pelo menos um italiano comentando:
- Molto particolare! (Muito especial, em português).
Ou ao menos foi assim em Basilicata, província no sul do país.
Chegamos de madrugada em Potenza, capital da província. O plano era aparecer mais cedo na casa de Rossana, nossa extrovertida e hospitaleira amiga italiana, mas as ruas sem iluminação e a desorientação do GPS nos levaram de um canto a outro da cidade, passando três vezes pelo mesmo posto de gasolina abandonado. Socorridos finalmente por nossa anfitriã, seguimos até sua casa no campo, onde dormimos entre figueiras, ameixeiras, oliveiras e pessegueiras.
Na manhã seguinte, fomos surpreendidos com um banquete matinal: torrada, manteiga, presunto, salame, patê de gorgonzola, azeite, queijo no formato de brócolis, azeitona, cereja, pêssego, ameixa e mais uns três tipos de pães e sucos. Todos feitos e colhidos pela família de Rossana.
Para quem tinha passado os últimos quinze dias entre biscoito, pão com ovo e miojo, acordei me sentindo um marajá. Peguei tudo que cabia no prato, só hesitando um pouco no queijo-brócolis, na espera de que uma cobaia se aventurasse primeiro. Rossana me olhou com total reprovação, balançando ferozmente a mão em formato de coxinha no ar, como se acabasse de presenciar o pior tipo de heresia. Descontente com minha indisciplina, colocou os últimos queijos no meu prato e me desafiou a comer. Nunca tinha experimentado nada parecido, mas era realmente uma delícia. Aquilo, a italiana garantia, era mozzarella caseira:
- Esta é distinta, particolare.
Saímos do campo e fomos para Matera, um povoado mais ao leste.
- Uma cidade com cara de antiguidade –um vendedor de discos de tarantella fazia a propaganda do lugar.
Não por menos, foi lá onde foram gravados os filmes “O Evangelho Segundo São Matheus” de Pasolini; “Rei David” de Bruce Beresford; a “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson; “Jesus: a História do Nascimento” de Catherine Hardwicke; e vários outros.
A Jerusalém cinematográfica é bem fácil de se perder. Passamos horas entre as mesmas ruas, com as mesmas casas de pedra, derretendo no calor da cidade. Para se refrescar, no mirante onde é possível ver toda a cidade, são vendidos os famosos gelattos de vários sabores, uma sobremesa que faz mudar o que você entende por sorvete. Depois de uma volta pelos ateliês dos artistas de rua, voltamos para almoçar na casa dos pais de Rossana.
Na Itália, comer não é um simples ato fisiológico. É quase um ritual religioso, com normas e ordem rigorosas. A sequência dos pratos obedece a uma lógica de degustação de sabores: do mais leve ao mais forte, sempre acompanhado por vinho (muito vinho!). Misturar tudo num único prato é puro sacrilégio.
Primeiro é servida a entrada, o antipasto, que no nosso caso foi torrada, tomate seco e a peculiar mussarela caseira. Depois é a vez do prato principal, que ainda é só o primeiro, o primo piatto. Deve-se esperar até a última pessoa ser servida e aguardar o “buon appetito” antes de tocar na comida. Daí para frente, é só alegria. Comi a melhor berinjela à parmeggiana que podia imaginar e não consegui segurar os elogios à mãe de Rossana, que agia com naturalidade. Afinal, como ela dizia, era tudo plantado por eles. Tudo, absolutamente particolare. Empolgada com meu apetite, ela pegava meu prato e me servia novamente, sempre avisando:
- Mangia! Mangia che te fa bene!
Satisfeitos? Nada disso. Em seguida surge o secondo piatto, normalmente com proteínas e acompanhamento. Comi um pouquinho do filé de peixe com ervas finas para não fazer desfeita e terminei meu copo de vinho. Vieram umas ameixas e um doce que parecia sonho de padaria de sobremesa, mas fiquei só respirando para evitar graves consequências. Por último, o digestivo. Um licor de uva verde para animar os espíritos.
Duração total do almoço: 3 horas. 180 minutos ouvindo a italianada conversar, gritar e gesticular. E o mais curioso, falavam de comida o tempo todo.
Molto particolare.
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Potenza, Basilicata, Itália.
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